sábado, outubro 31, 2009

O Violino

Aquele som com notas dodecafônicas, vinha do apartamento vizinho e incomodava terrivelmente Maria. O pior não era o contínuo atrito do arco com as cordas, que por sinal era belo, mas sim a coincidência de sê-lo em seus encontros com Aquino.
O apartamento ficava menor, quando de propósito o violino desafinava, desafiando o ouvido delicado daquela jovem. 
Sem saber o porquê da ousadia de seu colega de condomínio, Maria questionava tamanha provocação.
 - Será o ciúme de um amor em segredo? - Nunca vi esse cara em minha frente.

Esta noite não seria diferente. Aquino mal sai do elevador, e o arco vibra sobre a primeira nota. Seus passos até o apartemento de Maria tem o acompanhamento de uma seqüência em fusas, que de tão confusas já enlouquecem o visitante. 
Uma pausa!
Semibreve interrompida pelo som da campainha. 
A porta se abre, e para o beijo um som agudo, compasso quase infinito. 
O casal entra e apesar da intimidade do apartamento, cresce o volume.
As notas soam mais lentamente, e na sala de Maria, é de se imaginar abraços, promessas de amor eterno e pequenos beijos roubados.
No violino o tom já se perde há três compassos atrás, juntamente com as roupas de Aquino.
O silêncio não existe. 
Aquino, Maria e o violino formam a sinfonia, de sons estranhos vindos por todos os poros, cordas e frestas de portas, pernas e janelas.

Mas Aquino deve partir na mesma velocidade com que chega. 
Na despedida, o volume diminui, e é mais triste. Onde se ouvia Vivaldi, Maria ouve Chopin. No corpo do violino, uma lágrima.


Som e solidão torturam Maria. Fazem com que ela perca os sentidos e decidida bata à porta do vizinho. O violino cessa. 
A porta abre-se lentamente. 
Maria entra na sala ainda escura, sente uma mão tocá-la nos ombros e o arco do violino envolvendo seu pescoço. Sem tempo para reagir, ela se entrega aos carinhos daquele estranho.
Agora ela própria sente-se a música. Violino e suas notas não dependem de cordas para serem ouvidos.
Uma sinfonia mais bela é ouvida por todo o edifício, durante horas seguidas.
Até que o estranho vizinho  se afasta, as luzes se acendem e Maria se vira para enfim o conhecer.
Na sala fria, apenas um violino encostado à cadeira e seu arco pousando sobre o corpo de Maria, lembrando a figura de um quadro renascentista.
Maria já não estava mais em si, pois sem dó o seu novo amante lhe abandonara. O sol brilhava seus primeiros raios. Lá, naquela sala, a manhã anunciava uma nova primavera para Maria.

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